sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Chamava-se Beatriz

Ela era aquilo que os outros deveriam ser. Eles não sabiam disso, porque coitados, apenas a admiravam, de boca aberta e pescoço levantado, enquanto esperavam por outra refeição. Ela, de corpo gordo, despachada e frontal, adorava que a esperassem, enquanto cozinhava e desejava secretamente que os seus netos nunca mais crescessem. 
Todos por ali passavam. Os filhos emigrados, as noras com tiques de emigrantes, os filhos mais mimados e as noras mais deslumbrantes. Todos pediam a sua bênção, àquela mulher-fenómeno que tomava conta de todos, deixando que os ingénuos pensassem que eram eles que tomavam conta dela. Era impressionante como a imortalidade tinha chegado àquele lugar. Sim, todos, todos sabiam que as pessoas fortes e frontais que tomam conta das famílias nunca podem morrer. São demasiado fortes e frontais, demasiado precisas, demasiado nossas.
E ela era a mais especial. Depois da comida aos miúdos, os copos aos graúdos, e os ensinamentos às noras, ela sentava-se, colocando as mãos em cima da mesa, apoiando o corpo gordo, e contava histórias. Falava dos vizinhos e inventava-lhe nomes e todos riam com a capacidade daquela mulher em fazer sala. De olho nos netos, que desprezavam as couves, ela presenteava as bem comportadas que comiam tudo, dando-lhes colo e gelados. À noite, com a desculpa de ter medo, dormia agarrada a outra neta, que adormecia embalada naquele ressonar cansado, depois de o terço mal rezado e do beijo terno.
Ela era a mais especial. O tempo, começou a querer matar-lhe as pernas, mas mesmo apoiada pelos braços dos filhos já velhos, ela era a mais especial. E um dia, esqueceu-se dos nomes. Os netos, eram os netos e as particularidades já não interessavam. Mas ela continuava a ser a mais especial. 
Pele de bebé, riso de marota, humor deslumbrante, pernas gordas, ressonar cansado, coração imortal. A mais especial esqueceu-se de rezar o terço, pediu que o rezassem por ela, e que os netos nunca mais crescessem. Abriu-se a capela, abriu-se o fim do tempo dela, abriu-se os olhos magoados por a imortalidade ter ido habitar em outra casa, abriu-se a saudade dela, do cheiro dela, do riso dela, do tempo dela que era o nosso tempo de vida. Amamos-te tanto, desde o tempo em que nos davas gelados, em que nos davas palmadas, em que pedias que comêssemos tudo.
Não sei como vamos entregar a mais especial a outros mundos. É que afinal as mais fortes e frontais também morrem.

7 comentários:

Fabio Gomes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fabio Gomes disse...

Simplesmente lindo.

Sincero, doce. E triste.

Apesar de ter convivido por apenas algumas horas com ela, pude sentir o poder de sua presença.

E seu olhar...
Aquele olhar... era igual ao do meu avô. Desde de 94 aqueles olhos não me fitavam daquele jeito.

Saudades.

Foi difícil me segurar, e não abraçá-la com carinho, matando a saudade dos anos de ausência.

Sei o quanto ela era especial e presente. Imagino o tamanho da dor de vocês.
E sofro junto.

Mas ao mesmo tempo me alegro.
Pois tenho certeza que ela está bem, junto dos nossos.
E que agora ela corre livre e feliz pelo Outeiro.

Sempre olhando por vocês.
Cuidando do de vocês.
Pacientemente à espera, com seu sorriso maroto, do dia em que todos se reencontrarão.

Até lá fica a dor, a saudade.
A certeza de que uma vida pode ser digna, especial, bem vivida.

Beatriz, do Latim, "aquela que faz os outros felizes".

Obrigado tia!
Até logo!

Aos parentes de Portugal, meus sinceros sentimentos.
Estamos juntos também na dor.

Abraços,

Fabio.

Anónimo disse...

esta lindo o texto. muita força nesta hora... a saudade jamais passará...mas vais aprender a viver com ela...beijo

Anónimo disse...

(sara)<3

Luis Adão disse...

Marine, gostei muito do que li.beijo e muita força.
Luis

Shirley disse...

Talvez Deus tenha propositadamente atrasado-me naquele passeio em Fátima... Talvez Deus tenha poupado-me de presenciar o sofrimento daquela familia... Talvez não era a hora e nem o lugar de conhecê-la minha tia Beatriz... E não era!!
Mas tenho a certeza, que em um outro plano, sereno, sem tempo, hora ou lugar, eu vou ter com a senhora, minha tia.
Que a paz esteja com todos, que cá despediram-se em lágrimas de uma vida de exemplo... Os meus sinceros sentimentos a todos meus primos.

Diogo disse...

Ao deitar: pontos bons :)