quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Entende isto




Esta busca insensata dos outros,
aumenta uma falta, cada vez maior.
Não és deles, não és dos vivos, nem dos mortos,
és só parte da Terra que não se lembra de ti,
és só facto particular duma causa menor.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

José e Helena

José não precisava de muita coisa. Uma mochila, um par de ténis e água quente, eram os maiores dos seus luxos. Helena precisava de tudo. Tudo lhe fazia falta porque tudo era imprescindível. Tudo era estritamente necessário para se ser feliz. Sobretudo os pormenores. As coisas pequenas eram pérolas de respostas ao humanismo comum. Ele sem coisas, ela cheia de coisas, juntos poderiam atingir o equilíbrio. 
Helena pediu a José que lhe desse uma das suas três coisas. Se ele não precisava de muito, podia ceder-lhe um dos seus tesouros. Ele mirou a mochila já gasta, gabou os ténis, e usufruiu da água quente. Depois, a custo, cedeu-lhe os ténis e aprendeu a gostar do chão frio. Ela ficou feliz, por ter mais uma coisa indispensável, e ele, apesar de mais vazio, sentiu-se feliz por te-la feito feliz. Ambos gostaram da sensação, e por isso quiseram mais.  Ela elogiou-lhe a mochila e invejou a água quente e ele, já sem custo cedeu em primeiro um e depois outro tesouro. E ficou sem nada. 
Estavam extasiados com tamanha felicidade de concretização. Ele sentiu que ela o amaria para toda a vida, porque lhe tinha dado tudo.
Ela ficou corada, aproximou-se dele e quase o abraçou. Depois, mais envergonhada, disse-lhe:
"Deste-me tudo, ficaste sem nada, mas infelizmente não te posso agradecer, porque tenho os braços, as mãos, o corpo demasiado cheio para te conseguir abraçar".

Ele sentiu-se derrotado e, num instinto de raiva, retirou-lhe tudo o que tinha dado! Como podia ter sido ela tão ingrata?
Ela baixou a cabeça, chorou baixinho e em soluços murmurou lamentando - "Mas podias ter beijado a minha boca, que em nada segura e eu teria largado tudo, voluntariamente, por ti".

Devia não devia?

Vejo um pássaro a poisar na minha perna. Devia sentir paz, pelo menos é o que se espera.
Vejo uma cadeira desarrumada. Devia colocá-la certa, pelo menos é o que se espera.
Vejo um miúdo a chorar pela mãe. Devia saber se ela vem, ou não vem. Pelo menos é o que se espera.
Devia ser.
Devia sentir.
Devia ter.
Devia conseguir.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Diário de uma quase STAR!


Vem aí a Latada de Coimbra e com ela, deviam vir as Associações. Associações que protejam crianças fecundadas na Latada. E ainda por cima são crianças que nascem cultas e sábias - vêm a saber todos os nomes, tipos e marcas de cerveja. Repare-se, que são pessoas que deviam ser apoiadas pelo Estado - porque têm mães que as fizeram no estado que se sabe.
Mas quem não conhece a velha máxima de "o que se passa na Latada, fica na Latada?". E eu concordo com isso a 100%. Não quero saber o que eles e elas fazem tão bem debaixo das capinhas pretas.
Existem pessoas, daquelas pessoas boazinhas e simpáticas que todos gostam, que na altura da Latada usam t-shirts iguais e distribuem preservativos. Acho muito bem que o façam porque realmente festa é festa, e a Latada precisa de balões.
Todos os anos verdadeiros artistas revelam-se naquele espaço. Vêm de todos os lados e sabem fazer várias coisas, como cambalhotas no chão e urinar no rio. São os chamados "bêbados-art" que normalmente atraem uma legião de fãs - os outros amigos bêbados e toda uma equipe de preparação e preservação do espectáculo - INEM, Polícia e Assistentes Sociais.    
E porque as pessoas são o que são parem de descriminar quem não gosta da Latada. São pessoas igualmente necessárias no Mundo, especialmente porque são elas que tomam apontamentos das aulas e assinam por nós, enquanto o outro Mundo ouve Quim Barreiros.

sábado, 10 de setembro de 2011

Havia de conspirar qualquer coisita

Estou a sentir-me desintegrada. Toda a gente conspira e duvida de alguma coisa, e eu não consigo entrar na onda. Ainda tento inventar uma ou outra teoria sobre o que fez a quem e porquê que isto está relacionado com tudo aquilo, mas chego sempre à mesma conclusão: bocejar de sono e coçar de cabeça. É que queria acreditar num drama qualquer. Hoje, as televisões injectam-me com teorias da conspiração, mas as conclusões são tão complexas, que desisto ao meio da frase, de entender do que falam. Caraças. Anda meio mundo a lixar o outro meio mundo e eu a comer chocapic com leite quente. E o drama acontece quando estão demasiado moles e já não prestam.
Por isso, tomei uma decisão. Vou interiorizar qualquer coisa muito importante só para amanhã começar a conversa de café assim: "Gostas desse pastel de nata?"; "Ahm...sim, acho que sim"; "Pois, pensas tu que isso é um pastel na nata, minha besta burra...", "Hum... é mesmo um pastel de nata"; "Ahahhah! Então come esse teu dito pastel, depois escusas de vir para aqui chorar!" - feito isto, saio do café em grande drama, olhando uma última vez com malícia. 
Na verdade, não vou chamar besta burra as pessoas que comem pastéis de nata. Ainda por cima adoro pastéis de nata. Mas vou sair com malícia, só para não acharem que a minha vida é um tédio.
Feita esta grande e importante mudança na minha personalidade, decidi também hoje (com tanta decisão num dia, começo a achar que hoje é a passagem de ano), começar não SÓ a ter um riso malicioso, como a fazer o quê? a comer com malícia. Em vez de colocar os meus cereais no leite quente, molhar o dedo para ver se está mesmo quente, e comer os chocapics, de forma pouco entusiástica e a ler as calorias, vou agir de outra forma:
Agarrar na caixa e espreitar lá para dentro - só para confirmar que a CIA  não me está a tramar e a tentar dar-me uma caixa sem brinde ou surpresa;
Colocar o leite na taça e certificar-me que a taça está quente também (para não ter surpresas de leite morno);
Colocar os cereais, um a um, para perceber se são mesmo extra fortes em chocolate, e comer, devagar e pausadamente, fixando o barulho roedor do cereal. Não, a mim a América não me vai acusar de ataques terroristas! Porque eu sei a composição do meu cereal! E nenhuma cabeça pode decorar tanta coisa ao mesmo tempo - como fazer uma bomba e como comer chocapic com convicção.
E pronto, já tenho um ar de quem não se deixa lixar pelo Mundo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011



Dói tanto perder o que é nosso, mas muito mais quando descobrimos que é emprestado. E não falo de objectos, mas de pessoas que não voltam.



Ele chamava-se José, ela chamava-se Helena. Não se conheciam, nunca se tinham visto e nem sequer eram nascidos. Mas já sabiam que se amavam. Não em jeito de tórrido amor de cinema, onde a alma de um é cravada em alma de outro, mas em jeito de drama real, em que a alma de um sobrevive à conta da alma de outro, mas o condenado não sabe disso.

Ele chamava-se José e disso sabia. Era tão comum, tão normal, tão simples com a sua existência, que se lhe perguntassem o motivo de querer estar vivo, ele encolheria os ombros e diria "Não sei". Na verdade, não sabia grande coisa que implicasse mais do que era suposto. Era inteligente, mas não gostava de sentir grandes emoções. Elas atormentavam-no por serem reais.

Ela chamava-se Helena. Era tão especial, tão única, tão incomum, tão rara com a sua existência, que se lhe perguntassem o motivo de querer estar viva, ela saltaria para o colo da pessoa, beija-lo-ia-a, e diria aos gritos: para dar e receber amor! Ela era composta por uma magia branca, que a tornava débil. Era tão débil, que quase se partia só de lhe tocarem. Tão frágil, que enfraquecia se não sentisse emoções.

Bastou um olhar. Um olhar que o enfraqueceu a ele e a enforteceu a ela, longe de todas as expectativas, para perceberem que dependiam um do outro. Ele, do seu jeito meigo de amar a vida, ela, do seu lado racional de sobreviver. Ela pediu-lhe que a envolvesse, que tomasse conta, que permitisse. Ele, entusiasmou-se e decidiu levá-la num passeio real. Ela, pediu mais segurança, mais verdade na forma como ele lhe pegava, ele recuou. Teve medo de a partir, de não conseguir tocar-lhe com leveza, de a tornar impura. Ela exaltou-se com o medo, ele pediu compreensão.

Recuaram. A frieza de um não suportaria a leveza do outro. Mas era tarde para separar os corpos. Tarde para anunciar separações. Tarde para conceber vida em que um ou outro não existisse.

Separaram-se. Ela tornou-se mais fraca, mais pequena, mais morta. Ele tornou-se mais frio, mais incapaz, mais insensato. Ele diz que não precisa dela, porque o gelo do seu copo não se há-de derreter, ela diz que não precisa dele, porque a flor do seu colo não há-de envelhecer. 

Mas ele chora de noite, ela chora de noite, e a noite chora todos os dias, porque duas estrelas se separaram vivas e foram tentar brilhar em lugar opostos. O problema, é que a luz delas é só um reflexo de uma luz maior - do amor que os uniu.

Hoje parei e reflecti durante dois segundos. Não gostei da sensação.

Vi-me lá, longe, sentada e serena, a fazer jus ao que me fora ensinado -
a dar crédito à minha formação.
Vi-me lá, longe, louca e solta, a fazer jus ao que me foi alimentado -
à felicidade que já foi minha condição.

Agarro as bolas de sabão que o pequeno me faz -
grita, contente, com a existência da magia que se espalha pelo chão,
grita inocente, com a fácil forma de vida, que ainda ama e traz.

Vejo-me outra vez através das bolas, e sinto-me mais pequena.
Elas rebentam, acabam e morrem,
sinto-me outra vez, mulher-dilema.
Elas voam, transparentes e livres,
sinto-me outra vez eu mesma, de mim, com pena.

Caso os dedos e faço força.
Eles estalam, sei que faz mal, mas esqueço isso.
Estou nervosa, quero sair, mas temo a mossa,
eles estalam, sei que faz mal, mas fico nisto -

até que a noite acabe -  até que se transforme em dia - até que o tempo, já se sabe - diga que é tarde para querer ser dia.



domingo, 4 de setembro de 2011

Vou contar-te um segredo. Sei mais de ti do que tu própria imaginas





Sei que te achas incompreendida. Senhora de ti,
que sabe o que sabe, porque aprendeu com a vida,
que dá o que tem mas sempre contida,
do que solta e sentir-se não querida por ninguém.

Mas vou contar-te um segredo. Não estás certa nisso que sentes.
És só, mas só porque te vales de ti mesma,
não porque não me tenhas, e mesmo que tentes,
Não arredo pé.
Vou fingir não saber andar.
Vejo que o que és - é o que é
Vou saber sempre te aceitar.

Não adianta esse casulo tolo,
Não adianta dizeres que não me vês,
Não adianta chorares, sem consolo,
porque eu estou aqui hoje.
                         amanha. depois. No outro e no outro mês.
Até o teu cabelo loiro ser branco,
até o teu sobrolho ser falso,
até o teu andar ser manco,
e o teu passo ser um passo ao lado do meu largo abraço.

Porque és minha amiga e eu gosto de ti assim.

Dedicado a uma amiga que acordou não se sentindo especial - e isso nunca vou permitir que sintas

sábado, 3 de setembro de 2011

Percepção

Aos cinco anos achava que só eu tinha mãe.
Aos dez anos achava que o Pai Natal existia.
Aos quinze anos achava que as pessoas eram todas boas.

Aos vinte anos chorava porque tudo isto era mentira,
porque tudo isto inventado por crentes aldrabões,
que em gabanço à sua crueldade,
se fingiam felizes, para nos darem empurrões,
com o maior do balanço,
acertando na minha estúpida ingenuidade.

Agora já não acho mais nada.
Agora já não quero mais nada.
Agora já não reinvento mais nada.
Agora sei que nada é apenas nada
mesmo que me prometam tudo.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Chamava-se Beatriz

Ela era aquilo que os outros deveriam ser. Eles não sabiam disso, porque coitados, apenas a admiravam, de boca aberta e pescoço levantado, enquanto esperavam por outra refeição. Ela, de corpo gordo, despachada e frontal, adorava que a esperassem, enquanto cozinhava e desejava secretamente que os seus netos nunca mais crescessem. 
Todos por ali passavam. Os filhos emigrados, as noras com tiques de emigrantes, os filhos mais mimados e as noras mais deslumbrantes. Todos pediam a sua bênção, àquela mulher-fenómeno que tomava conta de todos, deixando que os ingénuos pensassem que eram eles que tomavam conta dela. Era impressionante como a imortalidade tinha chegado àquele lugar. Sim, todos, todos sabiam que as pessoas fortes e frontais que tomam conta das famílias nunca podem morrer. São demasiado fortes e frontais, demasiado precisas, demasiado nossas.
E ela era a mais especial. Depois da comida aos miúdos, os copos aos graúdos, e os ensinamentos às noras, ela sentava-se, colocando as mãos em cima da mesa, apoiando o corpo gordo, e contava histórias. Falava dos vizinhos e inventava-lhe nomes e todos riam com a capacidade daquela mulher em fazer sala. De olho nos netos, que desprezavam as couves, ela presenteava as bem comportadas que comiam tudo, dando-lhes colo e gelados. À noite, com a desculpa de ter medo, dormia agarrada a outra neta, que adormecia embalada naquele ressonar cansado, depois de o terço mal rezado e do beijo terno.
Ela era a mais especial. O tempo, começou a querer matar-lhe as pernas, mas mesmo apoiada pelos braços dos filhos já velhos, ela era a mais especial. E um dia, esqueceu-se dos nomes. Os netos, eram os netos e as particularidades já não interessavam. Mas ela continuava a ser a mais especial. 
Pele de bebé, riso de marota, humor deslumbrante, pernas gordas, ressonar cansado, coração imortal. A mais especial esqueceu-se de rezar o terço, pediu que o rezassem por ela, e que os netos nunca mais crescessem. Abriu-se a capela, abriu-se o fim do tempo dela, abriu-se os olhos magoados por a imortalidade ter ido habitar em outra casa, abriu-se a saudade dela, do cheiro dela, do riso dela, do tempo dela que era o nosso tempo de vida. Amamos-te tanto, desde o tempo em que nos davas gelados, em que nos davas palmadas, em que pedias que comêssemos tudo.
Não sei como vamos entregar a mais especial a outros mundos. É que afinal as mais fortes e frontais também morrem.