Ela era aquilo que os outros deveriam ser. Eles não sabiam disso, porque coitados, apenas a admiravam, de boca aberta e pescoço levantado, enquanto esperavam por outra refeição. Ela, de corpo gordo, despachada e frontal, adorava que a esperassem, enquanto cozinhava e desejava secretamente que os seus netos nunca mais crescessem.
Todos por ali passavam. Os filhos emigrados, as noras com tiques de emigrantes, os filhos mais mimados e as noras mais deslumbrantes. Todos pediam a sua bênção, àquela mulher-fenómeno que tomava conta de todos, deixando que os ingénuos pensassem que eram eles que tomavam conta dela. Era impressionante como a imortalidade tinha chegado àquele lugar. Sim, todos, todos sabiam que as pessoas fortes e frontais que tomam conta das famílias nunca podem morrer. São demasiado fortes e frontais, demasiado precisas, demasiado nossas.
E ela era a mais especial. Depois da comida aos miúdos, os copos aos graúdos, e os ensinamentos às noras, ela sentava-se, colocando as mãos em cima da mesa, apoiando o corpo gordo, e contava histórias. Falava dos vizinhos e inventava-lhe nomes e todos riam com a capacidade daquela mulher em fazer sala. De olho nos netos, que desprezavam as couves, ela presenteava as bem comportadas que comiam tudo, dando-lhes colo e gelados. À noite, com a desculpa de ter medo, dormia agarrada a outra neta, que adormecia embalada naquele ressonar cansado, depois de o terço mal rezado e do beijo terno.
Ela era a mais especial. O tempo, começou a querer matar-lhe as pernas, mas mesmo apoiada pelos braços dos filhos já velhos, ela era a mais especial. E um dia, esqueceu-se dos nomes. Os netos, eram os netos e as particularidades já não interessavam. Mas ela continuava a ser a mais especial.
Pele de bebé, riso de marota, humor deslumbrante, pernas gordas, ressonar cansado, coração imortal. A mais especial esqueceu-se de rezar o terço, pediu que o rezassem por ela, e que os netos nunca mais crescessem. Abriu-se a capela, abriu-se o fim do tempo dela, abriu-se os olhos magoados por a imortalidade ter ido habitar em outra casa, abriu-se a saudade dela, do cheiro dela, do riso dela, do tempo dela que era o nosso tempo de vida. Amamos-te tanto, desde o tempo em que nos davas gelados, em que nos davas palmadas, em que pedias que comêssemos tudo.
Não sei como vamos entregar a mais especial a outros mundos. É que afinal as mais fortes e frontais também morrem.