A ingenuidade cura-se. É uma
doença maldita que alguém nos pegou na infância e, vai-se lá saber porquê
(talvez alguma deformação genética), não passa com a idade sem medicamento
forte. Eu tenho esse defeito, essa mossa, essa merda que não sai com água.
Às vezes nos recantos da minha
maldade (também ela suficientemente ingénua por não ser nociva), desejo,
verdadeiramente, deixar de ser crente, deixar dormir o positivismo e deixar de
ser alimento para as aves rapinas, aqueles monstros de bico grande, que fazem
bicos para estarem onde estão, e que, com o mesmo bico, picam-nos e lixam-nos,
lá de cima. Lá de cima vê-se tudo em tamanho pequeno porquê? Porque realmente
os de baixo são mais pequenos.
Com o crescimento que a idade
ordena, deveria perceber que andamos todos a subir escadinhas, que os mais
espertos vão nas rolantes e os mais burros, aqueles que se esforçam e transpiram,
sobem pelas ditas escadas “normais”, chegando, obviamente, depois dos outros.
Mas não aprendo. Aprendi apenas
que uns desejam ser bons, mais pacientes, mais tolerantes, mais sensíveis e eu
desejo ser cabra. Não me acho um poço de virtudes (quem achar isso de mim morrerá
afogado no meu poço), mas sei que não sei dominar no mundo dos maus. E isso é,
lá está, mau. Não sei ser a venenosa, a falsa amiga, a chefe autoritária ou,
pelo menos, a carteira malandreca que troca a correspondência. E não é que não
tenha vontade – tenho pois e isso é um sinal (positivo!) que ainda possa ser
má, é que não sei como fazer a coisa. O remorso, a consciência, (são tão inúteis
como as letras pequenitas dos anúncios) lixam-me a vida e atrapalham-me os
planos. Uma vez, tentei ficar com o troco, porque o empregado de mesa
enganou-se a fazer a conta mas não consegui. Comecei imediatamente a sentir
azia e a achar que “era castigo divino”. Conclusão, começo a achar que era uma
gaja esperta para governar um banco -passaria a vida “aziada” e a levar água
benta para curar o pessoal do branqueamento de capitais.
Como ainda sofro da doença da
ingenuidade, quero acabar este desabafo em tom de incentivo aos restantes
doentes. Ok, não prestamos para governantes incisivos e cruéis, nem para
políticos, professores (que têm de ter um pensamento maquiavélico capaz de
transformar o ódio pelos putos em festas do magusto), camionistas (fazem filas
enormes sem qualquer remorso e filhas pelas estradas com menos remorso ainda),
médicos (choramos demasiado), mas podemos sempre ser o filho fofinho ou o
sobrinho favorito. Não serve para nada mas prevalece a esperança de sermos, um dia, o
herdeiro eleito da tia-avó e receber a mercearia endividada da velha.